Em época de grandes concursos públicos pululam ações contra as bancas examinadoras em relação a critério de correção de provas, anulação de questões e coisas do tipo. Mas desde que entrou em vigor a Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, a questão da confirmação da autodeclaração é mais um problema que tem sido levado ao conhecimento do Poder Judiciário.
A miscigenação no Brasil nunca foi obstáculo para o racismo e a discriminação que nos assola (sim, eu também sou negra) de todas as formas. Os olhares brasileiros identificam os negros em em qualquer ambiente e nós somos assim reconhecidos para todas as situações reportadas em jornais, revistas, televisão, trabalhos científicos e nosso cotidiano.
E ser negro no Brasil sempre foi razão para estar alijado das riquezas econômicas e sociais do País.
Mas quando essa mesma cor/raça passa a ser critério para promoção de direito, a fim de materializar um dos fundamentos da República Federativa do Brasil – dignidade da pessoa humana; e implementar um dos seus objetivos fundamentais – construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo aos negros acesso, seja ao concurso seja à universidade federal, por meio de reserva de vagas, então tudo se transforma em obstáculo.
Paradoxalmente, o concurso passa a ser um desses obstáculos. Não seus editais, porque costumam reproduzir o texto da Lei nº 12.990/14 e o decreto que o regulamenta, de modo que formalmente não criam embaraços. Mas o que temos visto, com muita frequência, são decisões de Comissões de Heteroidentificação negando a validade da autodeclaração ao pretexto de que o candidato não se enquadra no padrão racial de negros (pretos e pardos) definido pelo IBGE.
Uma completa falta de critério para identificar quem é negro, que varia de acordo com a subjetividade de cada comissão de heteroidentificação em cada concurso, de modo que não são poucos os casos de candidatos aprovados por cotas em um concurso patrocinado por uma determinada banca e reprovados em outro concurso patrocinado pela mesma banca.
Não nego a necessidade dessas comissões, até porque as tentativas de fraude são bastante comuns. Também não nego que há uma certa dificuldade de identificar as pessoas que estão naquilo que está se convencionando chamar de “Grey Area”, referindo-se a pessoas que estão no limite da transição entre branco e pardo claro (segundo a tabela dermatológica de Fitzpatrick).
E eu queria poder dizer que as dúvidas das comissões de heteroidentificação quanto ao pertencimento racial de candidatos se restringem à Grey Area”, mas temos recebido muitos clientes que definitivamente não estão nessa zona cinzenta e que são identificados como negros em qualquer lugar ou circunstância do seu dia a dia, menos perante as bancas examinadoras.
Então surge o questionamento: é realmente difícil identificar negro para fins de preenchimento das cotas raciais?
O IBGE classifica os brasileiros em 5 fenótipos: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.
Para fins de concurso público e acesso às universidades federais, são considerados negros os pretos e os pardos.
Identificar uma pessoa preta não causa tanta dificuldade. A dificuldade é em relação a pessoas pardas, porque o matiz varia muito.
Os dermatologistas e os antropólogos têm se valido da Escala de Fitzpatrick para identificar o tipo de pele de uma pessoa. Essa escala é uma classificação numérica da cor da pele humana para fins de estudo, tratamento de doenças e uma forma de distinguir a resposta de várias tonalidades de pele ao reagir com a luz ultravioleta, a qual posteriormente foi alterada para uma reação com a luz solar. O tipo I é a cor branca pálida, tipo II branca, tipo III parda-clara, tipo IV parda-moderado, tipo V parda-escura e tipo VI preta.
Mas a cor da pele é apenas um dos elementos que caracterizam o pertencimento racial de uma pessoa. Especificamente em relação aos negros, outros fatores são analisados, como a espessura dos cabelos (grossos, cacheados, crespos), a forma dos lábios (escuros, grandes, carnudos), o formato do nariz (largo na ponta), sobrancelhas (grossas e espessa), e perfil facial.
Outro fator que deve ser observado é a origem regional do candidato. A cidade onde a pessoa cresceu ou mora determina em muito as experiências raciais que ela tem ao longo da vida. A raça não é uma questão apenas pessoal, mas também e principalmente de interrelação, de modo que a forma como os conterrâneos enxergam e tratam a pessoa também é importante. Uma pessoa pode ser considerada parda em uma região e branca em outra.
Porque ser branco ou preto não é só uma questão de cor. A professora Kelly Quirino: em entrevista ao G1 explica que ser branco em uma sociedade racista é ter privilégios; ser negro em uma sociedade racista é sofrer violências, perder direitos, estar na base da pirâmide e ser criminalizado.
Segundo o IBGE uma pessoa parda é identificada se portar pelo menos 2 características do fenótipo negroide, e tenho para mim que certamente a cor da pele tem muito peso nessa identificação, até porque a pele é o maior órgão do corpo humano.
Embora muitos concursos não façam entrevista com os cotistas, e suas avaliações se limitem a fotos ou filmagens em ambientes que podem “clarear” demais uma pessoa, ela poderia extrair dos candidatos as situações de bullying que os negros sofreram e sofrem ao longo da vida só por existirem naquela cor. Situações que afetam aquilo que um ser humano tem de mais precioso para se posicionar na vida que é sua autoestima e que justificam, ao fim e ao cabo, a própria política de cotas.
Pena que não o façam, ou quando fazem se perdem em pormenores.
Ao contrário do que muita gente pensa, ascendência não é fator considerado nas cotas, e nem deve sê-lo, porque como dizia Oracyr Nogueira, o racismo no Brasil é de marca, não de origem. Aqui, observam-se os fenótipos, não os genótipos. Isto porque a miscigenação é um fato da nossa história. Todos carregamos a herança genética negra dos africanos, branca dos europeus e indígena dos povos originais. Mas o racismo no Brasil, diferente dos Estados Unidos, não se preocupa com nossa ancestralidade. O que importa é o ser humano individualmente considerado, tanto para ser discriminado como para não o ser.
As cotas têm o propósito específico de incluir quem sempre foi excluído. Pessoas que estão na “grey área”, no Brasil, de ordinário, não sofrem com a exclusão, com a discriminação ou com o racismo. E se o pertencimento racial não afetou a autoestima nem as chances de um candidato ascender socialmente, as cotas não são para ele.
Comissões de heteroidentificação erram. Algumas erram mais do que outras, como ocorreu em 2024 com a Comissão de Heteroidentificação do CEBRASPE no concurso para 3 carreiras da Advocacia Geral da União. Para reforçar a exclusão injusta de candidatos evidentemente negros, na decisão sobre os recursos, a comissão disse o seguinte:
considerando-se a estrutura da sua face, os lábios não são grossos, as palmas das mãos não são brancas ou de coloração destacada do tom de pele, seu dentes não apresentam coloração excessivamente branca, nem apresentam gengivas pigmentadas….
Como advogada e como pessoa negra nunca me senti pessoalmente tão ultrajada. Ler isso me remeteu instantaneamente para o período da escravidão, ao Pelourinho ou ao Valongo, para os tempos em que os negros eram vendidos e sua saúde e capacidade de trabalho eram avaliadas pelos seus dentes e gengivas (e não para avaliar seu pertencimento racial). Diga-se que essa justificativa foi publicada exatamente no dia 13 de maio de 2024. 136 após a assinatura da Lei Áurea. Irônico, não?
E quando disse que a decisão foi injusta, não é força de expressão. Um dos candidatos que recebeu da Comissão de Heteroidentificação essa decisão (foram vários) teve decisão liminar favorável do Poder Judiciário, inclusive com o seguinte pronunciamento do juiz do feito:
Não obstante, a simples verificação das fotografias do autor(…) demonstra que, ao contrário dos achados da banca de heteroidenficação, o autor é pessoa portadora do fenótipo pardo, indubitavelmente até, eu diria.
Embora o processo ainda tramite (com sentença favorável, aguardando julgamento da apelação da UNIÃO), o candidato já tomou posse e está entregando ao serviço público aquilo que toda uma vida de luta contra o racismo brasileiro lhe forjou: compromisso, dedicação, persistência e alteridade. E como nossos serviços públicos precisam dessas qualidades!
Identificar quem é negro no Brasil nunca foi um problema quando o objetivo é exclui-lo. Passa a sê-lo quando o objetivo é inclui-lo. O negro que se quer ter no serviço público e nas universidades federais é exatamente aquele que, por conta da sua cor de pele, da textura dos seus cabelos, da espessura de seus lábios, boca e sobrancelha, perfil facial, sempre foi discriminado na comunidade em que ele viveu pelo simples fato de existir.
Quando comissões de Heteroidentificação erram, resta ao candidato que não teve sua autodeclaração confirmada buscar seu direito através do Poder Judiciário, porque é preciso lembrar sempre que Cota não é favor, é Direito.
Em um próximo artigo, vamos avaliar como o Poder Judiciário tem se comportado em relação a esse tema.
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